
Tudo corre. Escorre. Tudo muda. Até na universidade
professores e alunos correm cada vez mais. Nada permanece. Tudo
é líquido. E todos corremos. Se não o fizermos, outros passarão
por cima de nós, e seremos considerados preguiçosos ou
incompetentes. Mas em geral não sabemos para onde corremos,
mesmo que daqui a pouco, não se sabe quando, venhamos a dar
de cara com a morte. Inevitavelmente. E ficamos produzindo,
fazendo coisas...
Precisamos ser competentes tecnicamente para que alguém
para podermos nos adaptar sempre ao que se nos pede. Nós, todos
nós sem exceção, é que devemos adaptar-nos, e não o mundo a
nós, pois o mundo é assim como é. Paradoxalmente, o mundo que
parece mudar tanto, parece também ser inflexível e imutável. É
preciso mover-se, a rede é vasta, os compromissos são tantos, as
expectativas muitas, as oportunidades abundantes, e o tempo é uma
mercadoria rara...
A vida se torna uma loja de doces para apetites
transformados, até pelo marketing, em voracidade cada vez maior.
Estamos sempre na beirada entre estar dentro e estar fora, entre ser
“incluído” e poder ser “excluído” a qualquer hora. Temos que estar
atentos, correndo o risco da depressão, sempre. A insegurança é
nossa companheira permanente, na companhia de gente insegura.
Sei que do meu lado também há gente tão insegura quanto eu.
Belo consolo! Mas isso, em vez de criar solidariedade entre os
inseguros, aumenta a indiferença, a irritação, a vontade de
competentemente empurrar para longe todos os concorrentes ao
meu lado. Em vez de cerrar fileiras na guerra contra a incerteza,
todos querem que os outros fiquem mais inseguros, abandonem o
barco e o deixem mais tranquilo para mim. E se diz que isso é a
insofismável lei do mercado, que isso é assim, that’s it, como um
tempo dizia a propaganda de um refrigerante conhecido: esta é a
razão das coisas, é uma necessidade, e basta. Isso é liberdade. Mas
não há escolha! Temos a sensação de nunca termos sido tão livres
e, ao mesmo tempo, a percepção de que somos totalmente incapazes
de mudar algo.
Sob outro aspecto, sentimo-nos vivendo em um mundo no
qual, claramente, vale o privado, o interesse privado, e não o público,
nem o interesse público. Ou então, temos uma visão muito paradoxal
da relação entre público e privado: por um lado, tudo o que está
diretamente situado como público aparece demonizado, como se
fosse o lugar do mal, da indecência, lugar em que seria impossível
fazer o bem, lugar em que só há interesses privados. E isso ocorre
ao mesmo tempo em que consideramos o âmbito privado como um
âmbito no qual se faz o bem sempre, no qual tudo é legitimável ou
justificável. Como conciliar isso? Certamente tudo isso mexe na
visão que se tem da política e do político, do Estado, do serviço
público, do funcionário público de governos municipais, estaduais
e federais, na visão que se tem da administração pública em geral.
Exemplo desta visão sobre o que é público e sobre a função
do Estado e do serviço público é o que disse Margareth Tatcher, ao
exercer recentemente o cargo de primeiro-ministro da Inglaterra,
defendendo o reinado absoluto da flexibilidade. Ela disse sem
eufemismos: “Não existe esta coisa chamada sociedade”. Só há
indivíduos, homens e mulheres como indivíduos, e pronto! E o
Estado? Deve ser uma instituição que deve funcionar como empresa
eficiente a serviço do interesse dos indivíduos. O governante deve
ser meramente um gestor, nada mais. O Estado deve, pois, ser
exclusivamente um meio para fins privados. A política também deve
ser apenas meio. E os outros seres humanos? Estes só importam se
me servem, individualmente, para alguma coisa. Mas quando todos
os outros são apenas meios, também eu sou transformado em puro
meio pelos outros, inevitavelmente...
Nesta situação de insegurança, de pretensa primazia do
privado e do indivíduo como tal, em que, paradoxalmente, sobra
pouca alternativa, individual ou social, para mudarmos algo ao nosso
redor e dentro de nós, como ficam os administradores tanto públicos
quanto privados? Ousaría dizer que eles administram, gerem,
executam, organizam a execução de tarefas que em geral não são
determinadas por eles mesmos, mas por outros, e têm que ser
competentes. Do contrário serão jogados para fora do jogo, da corrida
que está acontecendo globalmente, cada vez mais globalmente.
Também os administradores devem correr. E saber apresentar-se,
oferecer-se, vender-se no mercado. E deixar-se comprar também.
Devem ser “líquidos”, flexíveis, amoldando-se cada dia a novas
exigências estabelecidas não se sabe por quem, mas exigências
consideradas “naturais”, ou melhor, estabelecidas pelo mercado, este
estranho senhor sem identidade que é poderoso como ninguém e
que tem suas leis, que está em todo lugar, que não deixa ninguém
fora de seu controle, não dá trégua a ninguém, e nem dá tempo para
nada mais do que ficar correndo a seu serviço. Até que ele nos diga:
“você não me serve mais”! “Você é supérfluo. Você atrapalha!”.
Inclusive o Estado, o aparelho estatal, os serviços públicos,
quando deixam de ser úteis ao mercado, fazem com que os seres
humanos sejam jogados à margem e obrigados a se contentarem
em esperar a morte chegar; e às vezes até há gente que fica torcendo
para que isso aconteça o mais rápido, para não atrapalharmos o
trânsito e o funcionamento do mercado. E se alguém morrer, que
morra, não em casa, mas no hospital especializado, “dignamente”
(a morte pode ser digna?!), para não atrapalhar o sistema de
produção, a que o Estado deve servir, e para nos ajudar a
esquecermos que também nós iremos morrer.
Tudo isso se tornou normal. Cinicamente, duramente normal.
E se diz que não pode ser diferente. Que a história não pode mais
mudar, ou até já terminou. Que estamos na fase final da história.
E – repito – todos passamos a viver como se nada pudesse ser
mudado nesse modo de ser das coisas, e que só nos resta uma
coisa: nos iludirmos de que somos livres enquanto nos adaptamos
ao que existe!
Diante de tudo isso, de que adianta pensar? Pensar nos faz
mal, impedindo que sejamos competitivos. Pensar causa transtorno
no tráfego. Pensar nos faz parar, nos leva provavelmente a sermos
expulsos da corrida por incompetência, por falta de flexibilidade e
de produtividade. Ou então – como diriam os franceses que
inventaram o prêt-à-porter (pronto para usar) – agora temos o prêt-
à-penser. É só pagar que o mercado já oferece tudo pensado, para
ser usado. Por isso, os livros mais lidos são os de “autoajuda”, que
têm receitas precisas para tudo, para nosso corpo e nossa alma. E
não gostamos dos livros que nos fazem pensar e nos convidam a
nos colocar em jogo por nossa própria conta e risco.
A globalização nos possibilita o acesso cada vez maior a
informações, e maior possibilidade de comunicação. Mas isso de
modo algum parece favorecer uma visão mais crítica do que
acontece, nem favorece maior comunicação de fato. E quando as
ofertas são demasiadas, as escolhas parecem diminuir em vez de
aumentar, sobretudo porque o assédio das informações impede que
pensemos. Neste contexto, podemos afirmar que nossa civilização
atual parou de se questionar, parou de pensar. E que é esse o nosso
problema fundamental, pois o preço do silêncio passa a ser pago
na dura moeda do sofrimento humano.
Pode até ser que nos sintamos mais “felizes”, pois nos
sentimos mais competentes e mais criativos para satisfazer nossos
desejos, tanto no supermercado dos sabonetes e dos vinhos, quanto
naquele dos desejos sexuais. Só que esta felicidade tem tudo para
ser superficial, insatisfatória, a ponto de ser instigante a afirmação
de um atento leitor do que nos acontece hoje, como Umberto Eco:
“Alguém que é feliz a vida toda é um cretino; por isso,
antes de ser feliz, prefiro ser inquieto”. E ser inquieto é, neste
caso, não se deixar engolir pela lógica que estamos descrevendo, é
tentar pensar também.
Com Zygmunt Bauman (BAUMAN, 1999, p. 11), ousamos
arrematar: “Questionar as premissas supostamente inquestionáveis
do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que
devemos prestar a nossos companheiros humanos e a nós mesmos”.
Talvez nem sempre saibamos quais são as perguntas mais
importantes que devemos fazer, ou então, nós que nos achamos
tão estupendamente “modernos”, “criativos”, nos damos conta que
estamos repetindo as mesmas perguntas que já se fazem há séculos,
há milênios. E esquecemos as respostas já dadas ou os silêncios,
sem resposta, já manifestados. Já que o passado não interessa,
nem o futuro, mas só o presente, este pode nos enganar a respeito
de nossa originalidade e podemos achar que estamos mudando
sempre. Claro que mudam certas coisas, por exemplo, melhora nossa
capacidade técnica. E o que mais? Nossa “humanidade” também?
Nossa liberdade? Nossa felicidade? Por isso, faz bem incluirmos
em nossa pergunta pelo que está acontecendo hoje, uma referência
ao que aconteceu ontem. E faz bem também perguntarmos: por
que será que paramos de sonhar e renunciamos às energias
utópicas? Como sabem os historiadores, há um duplo movimento
na compreensão histórica: o presente pode ser iluminado pelo
passado, mas também o passado acaba sendo melhor compreendido
a partir do presente. E isso nos fornece um elemento a mais para
podermos pensar no que acontece e nas possibilidades que temos
para mudar o presente.
Parece que nos esquecemos de que nós, seres humanos,
temos como marca o fato de sermos “seres que falam”; bem mais,
ou não só, seres que fazem, como disse Aristóteles; que somos
frágeis, perdendo em força física, sob todos os aspectos, para algum
animal, mas somos “caniços pensantes” (Pascal). Por mais que
repitamos que esta é a era de Aquário, a era do conhecimento,
certamente não é a era do pensamento, da profundidade, da
reflexão. Até porque não temos tempo a perder. E além de tudo,
como já dissemos, pensar é perigoso, para quem pensa e para quem
está do lado de quem pensa, pois nos pode fazer perder o lugar no
mercado, que precisa produzir e consumir, objetos, coisas, e onde até
os seres humanos devem ser só produtores e consumidores. Nada mais.
Pois bem: é nesta paisagem que apresentamos um livro-texto
que pretende ser um Convite para pensar, convite feito aos
estudantes e às estudantes do Curso de Bacharelado em
Administração Pública a distância. Escolhi alguns temas para
pensar. E pensar é uma atividade realmente pessoal, por mais que
no diálogo com o passado e no debate com os nossos
contemporâneos se possa pensar mais e melhor. Mas, dito de forma
sintética, este convite para filosofar é antes de mais nada um convite
para responder à pergunta: o que está acontecendo comigo e com
os outros no mundo hoje?
Mais do que apresentar um texto cheio de informações
(conceitos, doutrinas, nomes) sobre a riquíssima tradição do
pensamento filosófico ocidental, que já tem 2.500 anos,
consideramos preferível escolher alguns temas, como o do próprio
conceito de filosofia, e de outras formas de conhecimento humano
(como o senso comum e a ciência), com algumas informações gerais
sobre a História da filosofia (Unidade 1); como o da ética, sua
crise e suas dificuldades teóricas, incluindo o debate em torno da
relação entre ética e política, e do poder e sua relação com a
liberdade, pois, afinal, a administração é sempre exercício de poder
(Unidade 2). Trata-se de uma escolha, sem a pretensão de ser a
melhor, e menos ainda de dar conta da filosofia como tal. Pensamos
que assim podemos dar uma ideia geral da filosofia em sua história
e do valor de uma atitude filosófica, que nos leve a pensar mais
sobre o que somos nós, seres humanos, sobre o ser humano como
problema e como solução, sobre o ser humano como profissional,
como gente, como indivíduo e como membro de uma comunidade
local, regional, nacional e cada vez mais cosmopolita ou “global”.
Embora não tenhamos a pretensão de responder
exaustivamente a todas as questões importantes da filosofia, para
organizar o texto seguimos o roteiro sugerido por Kant, talvez o maior
pensador moderno, ao apresentar as quatro perguntas fundamentais
para definir a atividade filosófica. A primeira pergunta é: “o que é
possível conhecer”? (os conceitos de filosofia, de ciência, de teologia
e de senso comum). A isso nos referimos sobretudo na Unidade 1. A
segunda: “o que devemos fazer?” encontra resposta na ética e na
política. A Unidade 2 procura responder a esta pergunta, incluindo
também nesta Unidade aspectos da terceira pergunta, que, para Kant,
é a seguinte: “o que nos é lícito esperar?”, e aí temos a ver com a
questão da religião. A quarta pergunta, a mais difícil de responder, é
a síntese das três perguntas anteriores: “o que é o ser humano?”, e
está presente, de algum modo, em todo
transcorrer do texto que aqui apresentamos.
Seguiremos este caminho na companhia
de alguns autores ou companheiros – e poderia
ser com tantos outros, esperando que todos os
leitores e leitoras se sintam bem e, quem sabe,
ao final, com mais vontade de continuar a
viagem reflexiva do que ao ler esta Apresentação.
Obviamente não será uma disciplina de
filosofia que irá tornar os futuros
administradores públicos novos “especialistas”
em filosofia. Insisto: interessa não tanto que o
administrador se torne um filósofo, conhecendo um conteúdo
determinado, muito vasto. Muitos textos clássicos estão aí disponíveis
nas livrarias, e cada vez mais na internet. Pode ser bom – e talvez os
que formularam o currículo mínimo do curso de Administração
pensassem nisso ao incluir a Filosofia – que o administrador também
seja estimulado a pensar por própria conta e risco, como diziam os
Iluministas modernos. Aude sapere! Ousa saber! Aliás, se queremos
tanto ser modernos, ou ser críticos, independente da profissão, como
cidadãos, não há outra saída senão pensar também.
Claro que nem todos gostarão, com a mesma intensidade,
deste convite para pensar; talvez alguns até nem gostem dele e
considerem “chato” ter que “estudar filosofia”, estudar estas
“bobagens”, estas coisas inúteis. Certamente a filosofia não serve
para nada. Pensar não serve para nada. Concordo. Mas quem disse
que são importantes só as coisas que servem, as coisas que são
meios para alguma coisa? Para que serve a liberdade, que tem na
política (ou deveria ter nela) o seu lugar por excelência? Para que
serve a felicidade? Para que serve o amor? Para que serve o prazer
sexual? Para que serve a amizade? Se estas coisas forem apenas
meios, certamente serão menos importantes. Mas se tais “coisas”
forem valiosas por si mesmas, certamente teremos muitos motivos
para pensar mais e melhor. Só para dar um exemplo: se um amigo
servir como meio para fazer mais dinheiro, quando se conseguir o
dinheiro, acabará a amizade; se o amigo servir para nos trazer mais
prazer, neste caso, conseguido o prazer, acaba a amizade; mas se
este amigo for mais que um meio, e a amizade for de fato um valor
para ambos os amigos, que mutuamente se tornam mais exigentes,
e conquistam assim também o prazer de serem amigos, então
percebemos que a amizade é mais que meio para outras coisas, e
se torna ela mesma um fim. É disso que falamos quando dizemos
que a filosofia não serve para nada, ou que tem valor em si mesma.
Contudo, ninguém é obrigado a pensar, nem a ter a coragem
de pensar! E pensar não dá dinheiro, certamente, ou nunca tornará
o dinheiro um fim a alcançar. Pensar é uma atitude improdutiva,
“coisa inútil” no mercado. Além do mais, pensar é perigoso, como
já disse. Acho, porém, que vale a pena correr este risco, pois se
poderá perceber que o mundo que temos não é o único possível
nem o melhor dos mundos, levando-nos quem sabe a resistir ao
que nos parece acontecer de maneira inevitável, instigando-nos a
ficar mais atentos para as brechas que podem surgir e nos
surpreender cá e lá, sugerindo, quem sabe, mudanças mais
substantivas, dentro de nós e entre nós, e não apenas na nossa
capacidade de produção e de consumo. Neste sentido, pensar é um
jeito de cada um cuidar de si. E se cada um cuidar melhor de si, a
nossa convivência com os outros poderá ser mais agradável.
E certamente o serviço público será mais responsável também.
Lembro de muito bom grado a sabedoria de Aristóteles: “com
amigos se pensa e se age melhor” (Ética a Nicômacos, 1155 a. 3, Brasília,
Edit. UnB, 1999, p. 153). E aqui se fala da amizade que é fim, conforme
se disse acima. Por isso, repito o convite para pensar: a aceitação do
convite pode tornar a vida mais interessante, mais leve e mais profunda,
embora menos produtiva e menos consumível. Neste caso,
aristotelicamente, poderei confirmar, mais uma vez: pensar vale a pena!
O convite está feito, e espero que você, estudante, possa
acompanhar o texto, em cada uma de suas Unidades, deixando-se
provocar por ele e por seu desejo de conhecer um pouco mais o
mundo em que vivemos e a si mesmo.
Professor Selvino José Assmann
no livro Filosofia e ética da UAB
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