segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Convite para pensar - Por Professor Selvino José Assmann

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Tudo corre. Escorre. Tudo muda. Até na universidade

professores e alunos correm cada vez mais. Nada permanece. Tudo

é líquido. E todos corremos. Se não o fizermos, outros passarão

por cima de nós, e seremos considerados preguiçosos ou

incompetentes. Mas em geral não sabemos para onde corremos,

mesmo que daqui a pouco, não se sabe quando, venhamos a dar

de cara com a morte. Inevitavelmente. E ficamos produzindo,

fazendo coisas...

Precisamos ser competentes tecnicamente para que alguém

nos dê um lugar, um emprego, mas também flexíveis, maleáveis,

para podermos nos adaptar sempre ao que se nos pede. Nós, todos

nós sem exceção, é que devemos adaptar-nos, e não o mundo a

nós, pois o mundo é assim como é. Paradoxalmente, o mundo que

parece mudar tanto, parece também ser inflexível e imutável. É

preciso mover-se, a rede é vasta, os compromissos são tantos, as

expectativas muitas, as oportunidades abundantes, e o tempo é uma

mercadoria rara...

A vida se torna uma loja de doces para apetites

transformados, até pelo marketing, em voracidade cada vez maior.

Estamos sempre na beirada entre estar dentro e estar fora, entre ser

“incluído” e poder ser “excluído” a qualquer hora. Temos que estar

atentos, correndo o risco da depressão, sempre. A insegurança é

nossa companheira permanente, na companhia de gente insegura.

Sei que do meu lado também há gente tão insegura quanto eu.

Belo consolo! Mas isso, em vez de criar solidariedade entre os

inseguros, aumenta a indiferença, a irritação, a vontade de

competentemente empurrar para longe todos os concorrentes ao
meu lado. Em vez de cerrar fileiras na guerra contra a incerteza,

todos querem que os outros fiquem mais inseguros, abandonem o

barco e o deixem mais tranquilo para mim. E se diz que isso é a

insofismável lei do mercado, que isso é assim, that’s it, como um

tempo dizia a propaganda de um refrigerante conhecido: esta é a

razão das coisas, é uma necessidade, e basta. Isso é liberdade. Mas

não há escolha! Temos a sensação de nunca termos sido tão livres

e, ao mesmo tempo, a percepção de que somos totalmente incapazes

de mudar algo.

Sob outro aspecto, sentimo-nos vivendo em um mundo no

qual, claramente, vale o privado, o interesse privado, e não o público,

nem o interesse público. Ou então, temos uma visão muito paradoxal

da relação entre público e privado: por um lado, tudo o que está

diretamente situado como público aparece demonizado, como se

fosse o lugar do mal, da indecência, lugar em que seria impossível

fazer o bem, lugar em que só há interesses privados. E isso ocorre

ao mesmo tempo em que consideramos o âmbito privado como um

âmbito no qual se faz o bem sempre, no qual tudo é legitimável ou

justificável. Como conciliar isso? Certamente tudo isso mexe na

visão que se tem da política e do político, do Estado, do serviço

público, do funcionário público de governos municipais, estaduais

e federais, na visão que se tem da administração pública em geral.

Exemplo desta visão sobre o que é público e sobre a função

do Estado e do serviço público é o que disse Margareth Tatcher, ao

exercer recentemente o cargo de primeiro-ministro da Inglaterra,

defendendo o reinado absoluto da flexibilidade. Ela disse sem

eufemismos: “Não existe esta coisa chamada sociedade”. Só há

indivíduos, homens e mulheres como indivíduos, e pronto! E o

Estado? Deve ser uma instituição que deve funcionar como empresa

eficiente a serviço do interesse dos indivíduos. O governante deve

ser meramente um gestor, nada mais. O Estado deve, pois, ser

exclusivamente um meio para fins privados. A política também deve

ser apenas meio. E os outros seres humanos? Estes só importam se

me servem, individualmente, para alguma coisa. Mas quando todos

os outros são apenas meios, também eu sou transformado em puro

meio pelos outros, inevitavelmente...

Nesta situação de insegurança, de pretensa primazia do

privado e do indivíduo como tal, em que, paradoxalmente, sobra

pouca alternativa, individual ou social, para mudarmos algo ao nosso

redor e dentro de nós, como ficam os administradores tanto públicos

quanto privados? Ousaría dizer que eles administram, gerem,

executam, organizam a execução de tarefas que em geral não são

determinadas por eles mesmos, mas por outros, e têm que ser

competentes. Do contrário serão jogados para fora do jogo, da corrida

que está acontecendo globalmente, cada vez mais globalmente.

Também os administradores devem correr. E saber apresentar-se,

oferecer-se, vender-se no mercado. E deixar-se comprar também.

Devem ser “líquidos”, flexíveis, amoldando-se cada dia a novas

exigências estabelecidas não se sabe por quem, mas exigências

consideradas “naturais”, ou melhor, estabelecidas pelo mercado, este

estranho senhor sem identidade que é poderoso como ninguém e

que tem suas leis, que está em todo lugar, que não deixa ninguém

fora de seu controle, não dá trégua a ninguém, e nem dá tempo para

nada mais do que ficar correndo a seu serviço. Até que ele nos diga:

“você não me serve mais”! “Você é supérfluo. Você atrapalha!”.

Inclusive o Estado, o aparelho estatal, os serviços públicos,

quando deixam de ser úteis ao mercado, fazem com que os seres

humanos sejam jogados à margem e obrigados a se contentarem

em esperar a morte chegar; e às vezes até há gente que fica torcendo

para que isso aconteça o mais rápido, para não atrapalharmos o

trânsito e o funcionamento do mercado. E se alguém morrer, que

morra, não em casa, mas no hospital especializado, “dignamente”

(a morte pode ser digna?!), para não atrapalhar o sistema de

produção, a que o Estado deve servir, e para nos ajudar a

esquecermos que também nós iremos morrer.

Tudo isso se tornou normal. Cinicamente, duramente normal.

E se diz que não pode ser diferente. Que a história não pode mais

mudar, ou até já terminou. Que estamos na fase final da história.

E – repito – todos passamos a viver como se nada pudesse ser

mudado nesse modo de ser das coisas, e que só nos resta uma

coisa: nos iludirmos de que somos livres enquanto nos adaptamos

ao que existe!

Diante de tudo isso, de que adianta pensar? Pensar nos faz

mal, impedindo que sejamos competitivos. Pensar causa transtorno

no tráfego. Pensar nos faz parar, nos leva provavelmente a sermos

expulsos da corrida por incompetência, por falta de flexibilidade e

de produtividade. Ou então – como diriam os franceses que

inventaram o prêt-à-porter (pronto para usar) – agora temos o prêt-

à-penser. É só pagar que o mercado já oferece tudo pensado, para

ser usado. Por isso, os livros mais lidos são os de “autoajuda”, que

têm receitas precisas para tudo, para nosso corpo e nossa alma. E

não gostamos dos livros que nos fazem pensar e nos convidam a

nos colocar em jogo por nossa própria conta e risco.

A globalização nos possibilita o acesso cada vez maior a

informações, e maior possibilidade de comunicação. Mas isso de

modo algum parece favorecer uma visão mais crítica do que

acontece, nem favorece maior comunicação de fato. E quando as

ofertas são demasiadas, as escolhas parecem diminuir em vez de

aumentar, sobretudo porque o assédio das informações impede que

pensemos. Neste contexto, podemos afirmar que nossa civilização

atual parou de se questionar, parou de pensar. E que é esse o nosso

problema fundamental, pois o preço do silêncio passa a ser pago

na dura moeda do sofrimento humano.

Pode até ser que nos sintamos mais “felizes”, pois nos

sentimos mais competentes e mais criativos para satisfazer nossos

desejos, tanto no supermercado dos sabonetes e dos vinhos, quanto

naquele dos desejos sexuais. Só que esta felicidade tem tudo para

ser superficial, insatisfatória, a ponto de ser instigante a afirmação

de um atento leitor do que nos acontece hoje, como Umberto Eco:

“Alguém que é feliz a vida toda é um cretino; por isso,

antes de ser feliz, prefiro ser inquieto”. E ser inquieto é, neste

caso, não se deixar engolir pela lógica que estamos descrevendo, é

tentar pensar também.

Com Zygmunt Bauman (BAUMAN, 1999, p. 11), ousamos

arrematar: “Questionar as premissas supostamente inquestionáveis

do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que

devemos prestar a nossos companheiros humanos e a nós mesmos”.

Talvez nem sempre saibamos quais são as perguntas mais

importantes que devemos fazer, ou então, nós que nos achamos

tão estupendamente “modernos”, “criativos”, nos damos conta que

estamos repetindo as mesmas perguntas que já se fazem há séculos,

há milênios. E esquecemos as respostas já dadas ou os silêncios,

sem resposta, já manifestados. Já que o passado não interessa,

nem o futuro, mas só o presente, este pode nos enganar a respeito

de nossa originalidade e podemos achar que estamos mudando

sempre. Claro que mudam certas coisas, por exemplo, melhora nossa

capacidade técnica. E o que mais? Nossa “humanidade” também?

Nossa liberdade? Nossa felicidade? Por isso, faz bem incluirmos

em nossa pergunta pelo que está acontecendo hoje, uma referência

ao que aconteceu ontem. E faz bem também perguntarmos: por

que será que paramos de sonhar e renunciamos às energias

utópicas? Como sabem os historiadores, há um duplo movimento

na compreensão histórica: o presente pode ser iluminado pelo

passado, mas também o passado acaba sendo melhor compreendido

a partir do presente. E isso nos fornece um elemento a mais para

podermos pensar no que acontece e nas possibilidades que temos

para mudar o presente.

Parece que nos esquecemos de que nós, seres humanos,

temos como marca o fato de sermos “seres que falam”; bem mais,

ou não só, seres que fazem, como disse Aristóteles; que somos

frágeis, perdendo em força física, sob todos os aspectos, para algum

animal, mas somos “caniços pensantes” (Pascal). Por mais que

repitamos que esta é a era de Aquário, a era do conhecimento,

certamente não é a era do pensamento, da profundidade, da

reflexão. Até porque não temos tempo a perder. E além de tudo,

como já dissemos, pensar é perigoso, para quem pensa e para quem

está do lado de quem pensa, pois nos pode fazer perder o lugar no

mercado, que precisa produzir e consumir, objetos, coisas, e onde até

os seres humanos devem ser só produtores e consumidores. Nada mais.

Pois bem: é nesta paisagem que apresentamos um livro-texto

que pretende ser um Convite para pensar, convite feito aos

estudantes e às estudantes do Curso de Bacharelado em

Administração Pública a distância. Escolhi alguns temas para

pensar. E pensar é uma atividade realmente pessoal, por mais que

no diálogo com o passado e no debate com os nossos

contemporâneos se possa pensar mais e melhor. Mas, dito de forma

sintética, este convite para filosofar é antes de mais nada um convite

para responder à pergunta: o que está acontecendo comigo e com

os outros no mundo hoje?

Mais do que apresentar um texto cheio de informações

(conceitos, doutrinas, nomes) sobre a riquíssima tradição do

pensamento filosófico ocidental, que já tem 2.500 anos,

consideramos preferível escolher alguns temas, como o do próprio

conceito de filosofia, e de outras formas de conhecimento humano

(como o senso comum e a ciência), com algumas informações gerais

sobre a História da filosofia (Unidade 1); como o da ética, sua

crise e suas dificuldades teóricas, incluindo o debate em torno da

relação entre ética e política, e do poder e sua relação com a

liberdade, pois, afinal, a administração é sempre exercício de poder

(Unidade 2). Trata-se de uma escolha, sem a pretensão de ser a

melhor, e menos ainda de dar conta da filosofia como tal. Pensamos

que assim podemos dar uma ideia geral da filosofia em sua história

e do valor de uma atitude filosófica, que nos leve a pensar mais

sobre o que somos nós, seres humanos, sobre o ser humano como

problema e como solução, sobre o ser humano como profissional,

como gente, como indivíduo e como membro de uma comunidade

local, regional, nacional e cada vez mais cosmopolita ou “global”.

Embora não tenhamos a pretensão de responder

exaustivamente a todas as questões importantes da filosofia, para

organizar o texto seguimos o roteiro sugerido por Kant, talvez o maior

pensador moderno, ao apresentar as quatro perguntas fundamentais

para definir a atividade filosófica. A primeira pergunta é: “o que é

possível conhecer”? (os conceitos de filosofia, de ciência, de teologia

e de senso comum). A isso nos referimos sobretudo na Unidade 1. A

segunda: “o que devemos fazer?” encontra resposta na ética e na

política. A Unidade 2 procura responder a esta pergunta, incluindo

também nesta Unidade aspectos da terceira pergunta, que, para Kant,

é a seguinte: “o que nos é lícito esperar?”, e aí temos a ver com a

questão da religião. A quarta pergunta, a mais difícil de responder, é

a síntese das três perguntas anteriores: “o que é o ser humano?”, e

está presente, de algum modo, em todo

transcorrer do texto que aqui apresentamos.

Seguiremos este caminho na companhia

de alguns autores ou companheiros – e poderia

ser com tantos outros, esperando que todos os

leitores e leitoras se sintam bem e, quem sabe,

ao final, com mais vontade de continuar a

viagem reflexiva do que ao ler esta Apresentação.

Obviamente não será uma disciplina de

filosofia que irá tornar os futuros

administradores públicos novos “especialistas”

em filosofia. Insisto: interessa não tanto que o

administrador se torne um filósofo, conhecendo um conteúdo

determinado, muito vasto. Muitos textos clássicos estão aí disponíveis

nas livrarias, e cada vez mais na internet. Pode ser bom – e talvez os

que formularam o currículo mínimo do curso de Administração

pensassem nisso ao incluir a Filosofia – que o administrador também

seja estimulado a pensar por própria conta e risco, como diziam os

Iluministas modernos. Aude sapere! Ousa saber! Aliás, se queremos

tanto ser modernos, ou ser críticos, independente da profissão, como

cidadãos, não há outra saída senão pensar também.

Claro que nem todos gostarão, com a mesma intensidade,

deste convite para pensar; talvez alguns até nem gostem dele e

considerem “chato” ter que “estudar filosofia”, estudar estas

“bobagens”, estas coisas inúteis. Certamente a filosofia não serve

para nada. Pensar não serve para nada. Concordo. Mas quem disse

que são importantes só as coisas que servem, as coisas que são

meios para alguma coisa? Para que serve a liberdade, que tem na

política (ou deveria ter nela) o seu lugar por excelência? Para que

serve a felicidade? Para que serve o amor? Para que serve o prazer

sexual? Para que serve a amizade? Se estas coisas forem apenas

meios, certamente serão menos importantes. Mas se tais “coisas”

forem valiosas por si mesmas, certamente teremos muitos motivos

para pensar mais e melhor. Só para dar um exemplo: se um amigo

servir como meio para fazer mais dinheiro, quando se conseguir o

dinheiro, acabará a amizade; se o amigo servir para nos trazer mais
prazer, neste caso, conseguido o prazer, acaba a amizade; mas se

este amigo for mais que um meio, e a amizade for de fato um valor

para ambos os amigos, que mutuamente se tornam mais exigentes,

e conquistam assim também o prazer de serem amigos, então

percebemos que a amizade é mais que meio para outras coisas, e

se torna ela mesma um fim. É disso que falamos quando dizemos

que a filosofia não serve para nada, ou que tem valor em si mesma.

Contudo, ninguém é obrigado a pensar, nem a ter a coragem

de pensar! E pensar não dá dinheiro, certamente, ou nunca tornará

o dinheiro um fim a alcançar. Pensar é uma atitude improdutiva,

“coisa inútil” no mercado. Além do mais, pensar é perigoso, como

já disse. Acho, porém, que vale a pena correr este risco, pois se

poderá perceber que o mundo que temos não é o único possível

nem o melhor dos mundos, levando-nos quem sabe a resistir ao

que nos parece acontecer de maneira inevitável, instigando-nos a

ficar mais atentos para as brechas que podem surgir e nos

surpreender cá e lá, sugerindo, quem sabe, mudanças mais

substantivas, dentro de nós e entre nós, e não apenas na nossa

capacidade de produção e de consumo. Neste sentido, pensar é um

jeito de cada um cuidar de si. E se cada um cuidar melhor de si, a

nossa convivência com os outros poderá ser mais agradável.

E certamente o serviço público será mais responsável também.

Lembro de muito bom grado a sabedoria de Aristóteles: “com

amigos se pensa e se age melhor” (Ética a Nicômacos, 1155 a. 3, Brasília,

Edit. UnB, 1999, p. 153). E aqui se fala da amizade que é fim, conforme

se disse acima. Por isso, repito o convite para pensar: a aceitação do

convite pode tornar a vida mais interessante, mais leve e mais profunda,

embora menos produtiva e menos consumível. Neste caso,

aristotelicamente, poderei confirmar, mais uma vez: pensar vale a pena!

O convite está feito, e espero que você, estudante, possa

acompanhar o texto, em cada uma de suas Unidades, deixando-se

provocar por ele e por seu desejo de conhecer um pouco mais o

mundo em que vivemos e a si mesmo.


Professor Selvino José Assmann 

no livro Filosofia e ética da UAB

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