sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Nenhum pouco preconceituosa

As quatro amigas estão sentadas ao redor da mesa no restaurante, enquanto aguardam seus pedidos serem atendidos, elas batem um papo descontraído sobre amenidades. Falam animadamente sobre os filhos, reclamam dos maridos, torcem o nariz para as empregadas domésticas que deixaram o serviço todo pela metade, formam um conselho para decidir se o corte de cabelo de tal atriz famosa combinou ou não com o formato do rosto dela. Algumas dizem que sim, outras que não. Dane-se, a unanimidade é burra mesmo, mas elas não! Elas são mulheres inteligentíssimas, modernas, mente aberta e poderosas meu bem! Beijinho no ombro para as invejosas! Muhá!

Entre uma conversa e outra, elas prestam um pouco de atenção na televisão que está ligada logo à frente. Em época de carnaval não se fala em outra coisa, a não ser no corpo escultural da mulata Globeleza.

- Gente! Que corpo é esse? Tudo natural! – diz uma.
- É verdade, essas negras tem uma genética poderosa! Se eu inventar de querer um corpo desses, assim, com tudo em cima, vou ter que morar na academia! – dia outra.

            Já conhecida pelos seus comentários inconvenientes, Dorinha também quis fazer parte da resenha.

            - Ai gurias, deixa ela, com esse cabelo escovão de aço! Com uma juba dessas não precisa nem de travesseiro na hora de dormir! – diz ela se achando a pessoa mais engraçada do universo. Ainda acrescentou – Mas até que se a gente reparar bem, essa negrada até que está ficando bonita, né? Eles estão até ficando cada vez mais parecidos com os brancos. Sabe como eu sei disso? Porque tão perdendo aquela cara de macaco, sabe? To falando daquele nariz achatado. – aperta o próprio nariz para demonstrar. - Assim ó! – e dá mais ruidosas gargalhadas.

            A fim de preservar a amizade as outras dão uma risadinha sem graça. A quarta amiga logo emenda um outro assunto para acabar com o constrangimento e para alívio geral, as idéias fluem e a tal mulata e seu atributos são esquecidos. Mas assim como quem esquece que mudou de canal, Dorinha não resiste e volta ao assunto.
           
- Ai gente, vocês sabem que eu não sou racista, né? Não sou nenhum pouco preconceituosa, aliás, tenho vários amigos negros e gays. Mas sabem, é estranho ver uma loira beijando um negão ou vice-versa. Esquisito! É igual ver dois homens se beijando, vocês têm que concordar comigo, é nojento!

As outras três amigas fazem cara de espanto e realmente não sabem o que falar depois dessa. Bocas se abrem e demoram a fechar. Dorinha percebe que alguma coisa está errada, mas ao invés de fechar a boca para não entrar mosquito, faz render o assunto.

- Ah, vão me dizer que vocês não concordam comigo? Pelo amor de Deus, um homem gostar de outro homem tudo bem, mas precisa ficar de beijo e agarramento na rua pra todo mundo ver? Precisa? Claro que não! Falta de vergonha na cara. Pior que isso é quando inventam de se vestir de mulher, me diz, pra que isso? Pra nada, só pra deixar o resto do mundo constrangido mesmo.

Alguém lembra a Dorinha que tá na hora de parar com essa conversa, elas são suas amigas até entendem o jeito maluco dela, mas já tem gente nas mesas ao lado olhando torto pra elas.
- Ai gente! Quer olhar? Deixa olhar! Não tem problema, ninguém aqui tá pagando minhas contas. Eu posso muito bem falar o que eu quiser, onde eu quiser e quando eu quiser. Da licença, isso aqui é uma democracia!

- Dorinha, pelo amor de Deus, isso é falta de respeito com as pessoas. O que é isso? – argumenta uma amiga mais pacifista.

- Além de tudo, discriminação por cor ou gênero é crime, vai presa hein! – diz uma outra mais exaltada.

Mas Dorinha não desiste.

- Tá bom gente, não precisam ficar nervosinhas! Deixa eu contar um babado pra vocês!

Diante das palavras mágicas em alusão a mais pura fofoca, as amigas novamente se empolgam. Mas a paz instaurada foi logo substituída pelo pânico assim que Dorinha abriu a boca.

- Meu primo, Flavio. Sabe? Aquele loiro, alto, todo bonito e sarado? Isso, esse mesmo. Então, ele estava casado com a Paula, daquela família meio alemã, com aquele sobrenome todo cheio de consoantes. Nunca vi precisar de tanto chiado para falar o sobrenome de uma pessoa, coisa mais chique do mundo! Um arraso! Enfim, a louca não largou ele para ficar com um negão? Aham! – Agora ela faz uma cara de espanto repetindo bem devagar e abrindo a boca exageradamente- N-E-G-Ã-O! Um pé sujo qualquer. Absurdo, né gente? Largar aquele gostoso ariano do meu primo pra ficar com um negro. Ridículo! Ah,o Flavio ficou arrasado. Eu falei pra ele não ficar assim, não. Ele que levantasse a cabeça e seguisse a vida adiante porque ela ia se arrepender. Claro que ia! Onde é que já se viu uma coisa dessas? Trocar o Flavio, meu primo lindo, por aquele negão? Não, não pode, está errado. Mas aí você pensa, pelo menos ele seguiu a vida adiante e ficou tudo bem. Nada. O Flavio teve a cara de pau de sair na balada, um pagode qualquer, e arrumar uma neguinha pra ele também! Aff... que vexame! Tiro trocado sabe? Se ela trocou ele por um negão, aí ele teve que pegar uma neguinha só por vingancinha. Sabe como é, né? Mas até que tá durando esse namoro deles. Esses dias convidei os dois para irem jantar lá em casa. Fiquei surpresa, a talzinha é formada em direito, tem escritório próprio e tudo! Bem limpinha ela, sabe? Cheirosa e tudo o mais. Não sei, é porque tem gente que diz que negro fede. Eu não sei, mas é a fama, né? Depois que eles foram embora, conferi a louça e tudo o mais, não tava faltando nada. Pois é gente, mas assim, eu tratei ela super bem, porque como já disse pra vocês, eu não sou nenhum pouco preconceituosa! Para mim todos os seres humanos são iguais. Vocês sabem, né?

As amigas estavam tão zonzas com tanta baboseira junta saindo por aquela boca, que nem sabiam o que dizer. Ficaram em silêncio. Intimamente, todas sabiam, muito bem, que Dorinha não tinha problema com preconceito, tinha era problema na cabeça mesmo.


Um pouco de juízo


A velha está sentada em sua cadeira de balanço, ali na varanda da casa ela pode ver quem passa na rua, carros e pessoas, as crianças brincando no pátio do vizinho. Ela escuta os barulhos que a fazem lembrar de que época de sua vida está vivendo, o apocalipse! Carros buzinam, pessoas gritam, outras se xingam. As crianças não jogam mais bola, são dois meninos e cada um deles está grudado em seu smartphone, divertem-se com os corpos absolutamente inertes, mas sendo grandes campeões de futebol jogando juntos no mundo virtual.

A vida mudou, ela sabe. Não foram apenas as rugas e os cabelos brancos que lhe mostraram que o tempo passou. A sua cabeça também já não é mais a mesma. Hoje os seus pensamentos são tão diferentes daqueles que tinha com seus vinte e poucos anos. Tolinha. Isso é o que era naquela época. Tudo na vida daquela jovem era tão intenso e urgente que às vezes, por não pensar um pouco melhor nos assuntos, metia os pés pelas mãos e quebrava a cara. Mas é verdade também que toda a força com que levava a vida, lhe proporcionaram o movimento tão necessário para que do alto de seus oitenta e cinco anos, ela soubesse que não precisaria ter tido tanta pressa. Querer que o tempo passe mais rápido na sua idade é a mesma coisa que desejar se despedir mais cedo.

Nas poucas vezes em que os filhos aparecem para lhe visitar, ela avisa:

-Vão mais devagar! Aproveitem a vida, parem com essa correria. Para que trabalhar tanto, para depois gastar todo o dinheiro e então precisar trabalhar mais ainda? Aprender a viver com menos para então poder viver mais! Seus filhos estão crescendo e vocês não estão prestando atenção nisso. Olhe, que quando eles forem homens feitos vocês vão sentir falta dessa época!

Não adianta falar, ela sabe. Mas como boa mãe que é, fala mesmo assim e repete tantas vezes quanto forem necessárias para ver se coloca um pouco de juízo na cabeça de seus meninos. Ora vejam, tratando como meninos seus filhos com mais de quarenta anos, mas é assim mesmo, para si, eles serão para sempre as suas crianças. Ela fala porque sabe, aconteceu consigo, parecia que ainda ontem estava levando Osmar e Antônio na escola, então ela piscou, e hoje os dois já têm os próprios filhos, tão grandes, quase indo pra universidade. 

Antônio até parece que tem mais juízo, mas Osmar é da pá virada. Desde cedo o Mazinho era medonho. Era uma criança revoltada, ela não entendia, deu a ele amor, dedicação e educação, tudo igualzinho ao dedicado a Toninho, mas um saiu de um jeito e o outro diferente. Agora que já são homens feitos as personalidades não mudaram nadinha. Qualquer dia desses Mazinho vai ter um ataque do coração, já avisou isso a ele.

-Meu filho, os médicos andam dizendo na TV que esse tal de estresse mata. Pare com isso. Não se exalte por causa de um bando de político ladrão. Eles já roubaram, tá feito, deixe a justiça cuidar disso agora. Agora você, se continuar desse jeito vai cair duro no chão qualquer dia desses. Pense com a cabeça, meu filho, e não com a emoção.


Já está velha, os filhos criados, os netos florescendo, mas ainda tem esperança, um dia o juízo entra na cabeça do filho, para que assim como ela, ele também possa ficar velho e repassar aos seus próprios filhos um pouco do que aprendeu pela vida afora.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Preocupada

Conclusão do dia: defensores de Aécio (PSDB) enchem tanto o saco quanto os militantes de Dilma (PT), e o crescimento dessas duas classes aparentemente incapazes de dialogar entre si, são tão preocupantes quanto qualquer outro tipo de extremismo.

Não sou filiada a nenhum partido político. Na última eleição não votei em nenhum candidato. Defendo a crítica livre de emoções e aberta ao diálogo.

Por isso, fico preocupada quando vejo internautas trocando agressões nas redes sociais, pessoas batendo boca na vida real, tudo por conta da falta de respeito pelas diferenças, nesse caso as políticas.

Há algum tempo tenho refletido justamente sobre a dificuldade que temos em lidar com as diferenças, sejam elas de cor, classe social, deficiências físicas, forma de pensar, time de futebol, partido político... a lista é bem grande, mas acho que já deu pra entender a que ponto pretendo chegar. O questionamento que me faço é, por que é tão difícil aceitar que o outro pode pensar diferente de mim? O que me leva a questionar também, porque eu não posso ouvir o que ele tem a dizer e chegarmos a um acordo? Ou simplesmente, aceitar que não somos iguais, não pensamos de forma semelhante, mas que precisamos aprender a respeitar esses contrastes?

Os escândalos relacionados à corrupção são mostrados todos os dias na mídia. Esses casos de corrupção se estendem desde licitações fraudulentas em prefeituras, passando pela máfia da Petrobrás e indo até o cúmulo, médicos realizando cirurgias desnecessárias para ganhar dinheiro ilegal, sem falar nos inúmeros outros casos que não foram descobertos ou ainda não foram divulgados.

A corrupção existe, não é de hoje. Entretanto, como ela pode se sustentar por tanto tempo? Não estou falando apenas do governo PT, porque relatando a história, vemos muitos outros casos semelhantes. Então, porque a roubalheira perdura e a aceitamos com tanta passividade?

As respostas podem ser muitas, mas eu venho pensando em uma possibilidade em especial, a de que nós, cada indivíduo brasileiro, estamos nos corrompendo. Como isso? Exemplos:

  1. Quando acreditamos que devemos cuidar de nossos pertences mas macular o do outro.
  2. Quando tiramos vantagem da fraqueza do outro para nosso próprio benefício.
  3. Quando tomamos atitudes puramente baseadas em dinheiro e não em princípios.
  4. Quando nos sensibilizamos pelos ataques terroristas na França mas desejamos a pena de morte para algum desafeto.
  5. Quando defendemos os direitos da mulher mas a desrespeitamos em sua forma de ser e comportar-se.
  6. Quando ensinamos religião aos nossos filhos mas publicamos mensagens de ódio nas redes sociais, e que por sinal ele também faz parte.
  7. Quando exaltamos a democracia mas não somos capazes de aceitar os resultados das urnas.

Poderia citar inúmeros outros exemplos, mas o objetivo deste texto é uma reflexão profunda sobre as bases em que estamos construindo nossa sociedade. Ao meu ver, o discurso de cada um de nós está destoando de nosso comportamento.

Mas o que isso tem a ver com a corrupção? Do meu ponto de vista, à medida que nos tornarmos cidadãos mais conscientes de nossos direitos mas também cumpridores de nossos deveres, nos sentiremos muito mais aptos a cobrar e seremos menos tolerantes à corrupção.

No curto prazo, isso não resolveria de uma vez por todas os problemas que enfrentamos, mas começaria a criar um modelo para o futuro. Penso que quando pregamos o ódio e medidas extremas como critérios de punição aos políticos, corruptos e corruptores, estamos assumindo o descrédito que dedicamos à justiça desse país. Dessa forma, se não acreditamos que possam existir políticos honestos ou bases legais que efetivamente punam os condenados, será que não está na hora de abrir um novo questionamento, de que talvez seja hora de mudar a forma como se faz política nesse país? Uma reforma política se faz urgentemente necessária, mas para falar disso, eu preciso de outro post.

Abraços a todos!