As quatro
amigas estão sentadas ao redor da mesa no restaurante, enquanto aguardam seus
pedidos serem atendidos, elas batem um papo descontraído sobre amenidades.
Falam animadamente sobre os filhos, reclamam dos maridos, torcem o nariz para
as empregadas domésticas que deixaram o serviço todo pela metade, formam um
conselho para decidir se o corte de cabelo de tal atriz famosa combinou ou não
com o formato do rosto dela. Algumas dizem que sim, outras que não. Dane-se, a
unanimidade é burra mesmo, mas elas não! Elas são mulheres inteligentíssimas,
modernas, mente aberta e poderosas meu bem! Beijinho no ombro para as
invejosas! Muhá!
Entre uma
conversa e outra, elas prestam um pouco de atenção na televisão que está ligada
logo à frente. Em época de carnaval não se fala em outra coisa, a não ser no
corpo escultural da mulata Globeleza.
- Gente! Que
corpo é esse? Tudo natural! – diz uma.
- É verdade,
essas negras tem uma genética poderosa! Se eu inventar de querer um corpo
desses, assim, com tudo em cima, vou ter que morar na academia! – dia outra.
Já
conhecida pelos seus comentários inconvenientes, Dorinha também quis fazer
parte da resenha.
-
Ai gurias, deixa ela, com esse cabelo escovão de aço! Com uma juba dessas não
precisa nem de travesseiro na hora de dormir! – diz ela se achando a pessoa
mais engraçada do universo. Ainda acrescentou – Mas até que se a gente reparar
bem, essa negrada até que está ficando bonita, né? Eles estão até ficando cada
vez mais parecidos com os brancos. Sabe como eu sei disso? Porque tão perdendo
aquela cara de macaco, sabe? To falando daquele nariz achatado. – aperta o
próprio nariz para demonstrar. - Assim ó! – e dá mais ruidosas gargalhadas.
A
fim de preservar a amizade as outras dão uma risadinha sem graça. A quarta
amiga logo emenda um outro assunto para acabar com o constrangimento e para
alívio geral, as idéias fluem e a tal mulata e seu atributos são esquecidos.
Mas assim como quem esquece que mudou de canal, Dorinha não resiste e volta ao
assunto.
- Ai gente, vocês sabem
que eu não sou racista, né? Não sou nenhum pouco preconceituosa, aliás, tenho
vários amigos negros e gays. Mas sabem, é estranho ver uma loira beijando um
negão ou vice-versa. Esquisito! É igual ver dois homens se beijando, vocês têm
que concordar comigo, é nojento!
As outras
três amigas fazem cara de espanto e realmente não sabem o que falar depois
dessa. Bocas se abrem e demoram a fechar. Dorinha percebe que alguma coisa está
errada, mas ao invés de fechar a boca para não entrar mosquito, faz render o
assunto.
- Ah, vão me
dizer que vocês não concordam comigo? Pelo amor de Deus, um homem gostar de
outro homem tudo bem, mas precisa ficar de beijo e agarramento na rua pra todo
mundo ver? Precisa? Claro que não! Falta de vergonha na cara. Pior que isso é
quando inventam de se vestir de mulher, me diz, pra que isso? Pra nada, só pra
deixar o resto do mundo constrangido mesmo.
Alguém lembra
a Dorinha que tá na hora de parar com essa conversa, elas são suas amigas até
entendem o jeito maluco dela, mas já tem gente nas mesas ao lado olhando torto
pra elas.
- Ai gente!
Quer olhar? Deixa olhar! Não tem problema, ninguém aqui tá pagando minhas
contas. Eu posso muito bem falar o que eu quiser, onde eu quiser e quando eu
quiser. Da licença, isso aqui é uma democracia!
- Dorinha,
pelo amor de Deus, isso é falta de respeito com as pessoas. O que é isso? –
argumenta uma amiga mais pacifista.
- Além de
tudo, discriminação por cor ou gênero é crime, vai presa hein! – diz uma outra
mais exaltada.
Mas Dorinha
não desiste.
- Tá bom
gente, não precisam ficar nervosinhas! Deixa eu contar um babado pra vocês!
Diante das
palavras mágicas em alusão a mais pura fofoca, as amigas novamente se empolgam.
Mas a paz instaurada foi logo substituída pelo pânico assim que Dorinha abriu a
boca.
- Meu primo,
Flavio. Sabe? Aquele loiro, alto, todo bonito e sarado? Isso, esse mesmo.
Então, ele estava casado com a Paula, daquela família meio alemã, com aquele
sobrenome todo cheio de consoantes. Nunca vi precisar de tanto chiado para
falar o sobrenome de uma pessoa, coisa mais chique do mundo! Um arraso! Enfim,
a louca não largou ele para ficar com um negão? Aham! – Agora ela faz uma cara
de espanto repetindo bem devagar e abrindo a boca exageradamente- N-E-G-Ã-O! Um
pé sujo qualquer. Absurdo, né gente? Largar aquele gostoso ariano do meu primo
pra ficar com um negro. Ridículo! Ah,o Flavio ficou arrasado. Eu falei pra ele
não ficar assim, não. Ele que levantasse a cabeça e seguisse a vida adiante
porque ela ia se arrepender. Claro que ia! Onde é que já se viu uma coisa
dessas? Trocar o Flavio, meu primo lindo, por aquele negão? Não, não pode, está
errado. Mas aí você pensa, pelo menos ele seguiu a vida adiante e ficou tudo
bem. Nada. O Flavio teve a cara de pau de sair na balada, um pagode qualquer, e
arrumar uma neguinha pra ele também! Aff... que vexame! Tiro trocado sabe? Se
ela trocou ele por um negão, aí ele teve que pegar uma neguinha só por
vingancinha. Sabe como é, né? Mas até que tá durando esse namoro deles. Esses
dias convidei os dois para irem jantar lá em casa. Fiquei surpresa, a talzinha
é formada em direito, tem escritório próprio e tudo! Bem limpinha ela, sabe?
Cheirosa e tudo o mais. Não sei, é porque tem gente que diz que negro fede. Eu
não sei, mas é a fama, né? Depois que eles foram embora, conferi a louça e tudo
o mais, não tava faltando nada. Pois é gente, mas assim, eu tratei ela super
bem, porque como já disse pra vocês, eu não sou nenhum pouco preconceituosa!
Para mim todos os seres humanos são iguais. Vocês sabem, né?
As amigas
estavam tão zonzas com tanta baboseira junta saindo por aquela boca, que nem
sabiam o que dizer. Ficaram em silêncio. Intimamente, todas sabiam, muito bem,
que Dorinha não tinha problema com preconceito, tinha era problema na cabeça
mesmo.